DEPOIS DA TEMPESTADE UM LUAR..
Uma tarde de sábado numa aldeia sem (eletri)cidade, pode ser uma experiência interessante para viajar no tempo sem pagar bilhete. Aos anos em que os aparelhos não incomodavam o silêncio e as conversas não se sobrepunham às imagens. Nós por cá assistimos à tempestade de camarote. Abrimos cortinas de par em par, subimos estores e ficámos a dividir atenção entre a força do vento, a inclinação da chuva e a mesa das manualidades. O certo é que o sábado foi passando e a falta de energia, só a sentimos verdadeiramente quando já passavam das seis da tarde.
Falámos e deixámos a porta aberta ao silêncio. O Benavente é assim, luminoso e inspirador, até quando todos se queixam de cinzentismo e incómodo. Aqui uma tempestade é menos ruidosa e mais bonita que um espectáculo de artifício. Enquanto a chuva ía decidindo direcções abruptas no vazio, revirando sentidos de milhares de gotas, apreciámos o bailado das árvores como se Olga Roriz as tivesse instruído na coreografia "Temporal". Quando o fim de tarde descansou os trabalhos manuais e mergulhou a casa no silêncio absoluto, acendemos velas e lareira. Iluminados pelo fogo falámos de escuridão, de como se vivia no tempo em que as avós teria 4 anos. Mãe e filhos, à luz de velas. De relações cortadas com o resto do mundo, eu e eles os dois. Home alone.
OS ANJOS NÃO DORMEM, DESCANSAM OS OLHOS (cit. adaptada de Salvador Carvalho)
Quando regressei a casa, já no início de madrugada, e os dois dormiam, em andares diferentes, o cenário era ainda mais hipnotizante. Digno de pintura impressionista. Às duas da manhã, deixei que a segunda me embalasse na rua do Benavente mais tempo do que seria normal dado o adiantado da hora. Um silêncio absoluto, céu varrido recente e um lago de luz era o quadro da nossa morada. Recordei uma contracapa rasurada da "Aparição":
«Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza...»
Magnífico jogo de sombras e luz, quando saio do carro e me vejo projectada na parede da garagem. Eu e a minha evidência de vida comovidas com este self portrait. Acordo o Pedro e subimos, deixamos que as janelas partilhem connosco esse luar e adormecemos nesse agradecimento de termos uma lua inteira “por nossa casa”.
Conheço um menino que volta e meia diz que não está a dormir, está a descansar os olhos. Tenho a certeza que é sob um olhar brilhante e zeloso de alguns anjos, que apenas descansam os olhos e nunca dormem, que sobrevive uma amizade que atravessa mais duas décadas onde cresceram pessoas especiais como a Carla.
Lindo texto, amiga. Mania destes homens de um metro de altura, que teimam em não admitir que dormem. "Repousar os olhos", tb serve!
ResponderEliminarnão reparei que tinhas entrado no chat, na sexta-feira...sorry!
bjinhos